Será difícil para mim esquecer aquele mês de outubro em Londres. Um momento crucial em que o mundo do xadrez deu um giro não se sabe muito bem em que direção. Foi um mês chuvoso, como costumam ser os outonos nesta cidade, e esse ambiente cinzento e melancólico acompanhava perfeitamente a amalgama de sensações que passavam por minha cabeça.
Era a primeira vez que se me apresentava a oportunidade de cobrir in situ um match pelo Campeonato do Mundo e, até o momento, não voltei a ter outra. Talvez nunca volte a surgir-me -ao menos neste formato "clássico” - em vista dos desesperadores cancelamentos de Buenos Aires, Yalta, e dos que estejam por vir. Assim que, de início, o que sentia era uma enorme emoção por presenciar na primeira fila um duelo de semelhante nível.
Também tinha muitas expectativas pelo trabalho que ia desempenhar em Londres. Fazia já cinco anos que Kasparov não defendia seu titulo e, apesar de todas as irregularidades e tropelias cometidas pelo caminho -como a de Cazorla-, por fim íamos tê-lo sentado frente ao número dois do ranking. A expectativa jornalística era considerável, e eu estava consciente de que, qualquer que fosse o resultado, o match teria relevância histórica: Se Kasparov perdesse, por motivos óbvios; Se ganhasse, porque sua legenda cresceria de tal modo que tornaria pequenas as conquistas de seus predecessores.
A impressão que tenho é de que quase todos os Grandes Mestres e muitos aficionados preferiam que ocorresse a primeira hipótese -que Kasparov perdesse-, talvez inconscientemente, ou sem querer pensar em tudo o que acarretaria a queda do velho ídolo. Estava o mundo do xadrez preparado para isso? Teria Kramnik -ou este duelo- prestígio suficiente para converter-se na nova imagem pública do xadrez?
Deixando estas questões à parte, tudo em mim eram expectativas e pensamentos otimistas, porém que se empanaram logo ao chegar à sala de jogo. Suponho que vocês recordarão as espetaculares sedes escolhidas para anteriores encontros deste estilo: O World Trade Center de Nova York, o Hotel Savoy, na mesma Londres, o teatro Tchaikowsky, em Moscou... Pois bem, imaginem-se agora os estúdios de televisão Riverside, a antítese total de tudo isso. Apesar de sua boa situação, tratava-se de um edifício de três andares, discreto e cinzento, e com mais aspecto de nave industrial que de outra coisa. O próprio Kasparov, meses mais tarde, o definiria como “uma mistura entre um estábulo e algo pior que não me atrevo a dizer...”. E devo admitir que sua descrição, mesmo sem terminar a frase, é mais apropriada que a minha.
O interior também deixava muito a desejar: Um cenário reduzido, umas arquibancadas com capacidade para no máximo 150 espectadores, e uma sala de imprensa rudimentar e situada três pisos acima, sem elevador. Foram tantas as deficiências que não teria nenhum sentido enumerá-las, e menos agora. O que é pertinente assinalar é que já então se podia prever o pouco e desluzido futuro que aguardava Braingames. A ausência de publicidade em todo o edifício delatava a inexistência de qualquer patrocinador, com exceção do CanalWeb, empresa que havia adquirido os direitos de transmissão, e cuja exclusividade foi protegida a todo custo.
O desencanto ficou em parte suavizado ao reunir-me ali com velhos e novos amigos, companheiros de viagens e de penúrias nesta espécie de vida circense do xadrez. O primeiro que encontrei, ainda pelas ruas de Londres, foi Leontxo Garcia, grandalhão e inconfundível, apesar da distância. Mais tarde, sem esperar, porém sem que ninguém estanhasse sua visita, nos encontramos também com Ricardo Calvo.
Agora, quando já se passou um ano desde seu triste e prematuro desaparecimento, me vêm à memória lembranças muito afetuosas daqueles dias. Não era sempre fácil a amizade com Ricalvo, e eu, como tantos outros, fui alguma que outra vez objeto de suas farpas, que doíam especialmente porque costumavam ser certeiras. Porém, cada vez que me lembro dele, recordo-me, sobretudo de algumas agradáveis conversas que tivemos naqueles dias em Londres, porque Ricardo era um excelente conversador. Tudo, desde o tom até as inflexões de sua voz, passando pelas pausas que fazia para inalar ou exalar uma tragada de seu cigarro, convertiam as conversas com ele em uma experiência quase hipnótica. Abusando de sua sabedoria, que sempre estava disposto a compartilhar, pedi seu conselho sobre lugares históricos do xadrez que valesse a pena visitar em Londres. Advertiu-me que para visitar alguns deles era necessário usar gravata e, intuindo que eu não havia colocado nenhuma em minha bagagem, ofereceu-se de imediato para emprestar-me uma das suas. Ao final, nunca usei a gravata que me ofereceu, porém penso que se o tivesse feito não teria buscado qualquer pretexto para trocá-la por uma nova -e em sendo possível, mais cara e melhor, claro- e assim ficar eu com a sua, como recordação. Porque sentia uma reservada admiração por Ricardo que, desgraçadamente, nunca tive ocasião de expressar-lhe, como era devido.
Com esta recordação, dou por construída a crônica de ambiente, e adiante, farei um resumo dos momentos mais críticos do match (Para os leitores que queiram recordar o choque em detalhes, remeto-lhes ao arquivo e, concretamente, à revista Jaque número 529, onde aparecem comentadas todas as partidas).
Muito se especulou acerca de se Kasparov estava passando por problemas em sua vida pessoal durante este match. Se esgrimam como possíveis causas para sua baixa forma a disputa pela custódia de sua filha, Polina, fruto de seu primeiro matrimônio, e também a demanda interposta contra o WCC por parte de Alexei Shirov, que coincidiu com o começo do match. O próprio Kasparov parecia resistente a desmentir estes rumores, oferecendo respostas ambíguas como “algo está acontecendo, porém não me parece o momento de falar disso”, e declarações por esse estilo.
Eu creio que a chave esteve nas duas primeiras partidas, que marcaram decisivamente o transcurso do resto do encontro. De alguma forma, a forte arrancada de Kramnik assustou Kasparov, que teve que assimilar uma situação nova em toda sua carreira: a de não ser ele quem levasse a iniciativa nas aberturas. Antonio Gude resumiu isso muito bem em sua crônica para Jaque: “Surpresa com negras, surpresa com brancas. Era para inquietar-se...”.
E realmente era. Já relatei em outros artigos (Jaque-Practica Nº 17) o muito que me impressionou a imponente segurança em si mesmo que Kramnik demonstrava. Tudo em sua linguagem corporal expressava confiança e autocontrole, e isso correspondia com o que víamos no tabuleiro. A primeira surpresa, a Berlinense, está claro que resultou uma inteligente escolha que engasgou Kasparov desde o princípio. A segunda, a venenosa novidade na Grünfeld, foi ainda mais devastadora, e Vladimir golpeou onde já havia aberto brecha. Pude ver, naquele dia, Clara Kasparova abandonar Riverside Studio com lágrimas nos olhos, como se o drama já se tivesse consumado.
Kasparov não foi o mesmo daí em diante. Antes das partidas, mostrava-se nervoso, apurava ao máximo o tempo falando com Dokhoian na porta do edifício, ou fazendo consultas por telefone, presumivelmente a seu outro analista, Kharlov. Depois, durante o jogo, parecia apático, cansado, e seus olhares ao público diziam que desejava estar em qualquer outro lugar do mundo, menos ali. Nem rastro de sua proverbial ferocidade e de seus olhares de fogo.
O match ia transcorrendo, empate após empate, e o "Ogro" não dava sinais de reação. Pelo contrário, passou por muitos apuros nas partidas quarta e sexta e, nesta fase, parecia que em caso de produzir-se uma vitória, esta cairia do lado de Kramnik. Isso era lógico, ainda que creio que todos continuávamos esperando que, de algum modo, Kasparov as engenhasse para igualar o marcador, como havia feito anteriormente, cada vez que se havia encontrado em um apuro.
A segunda derrota de Kasparov, na décima partida, me pegou ausente de Londres. Havia "escapado" por uns dias ao México para cobrir outro evento, e ali recebi também a noticia de que Vallejo havia ganho o Campeonato do Mundo sub-18. Foi, desde logo, uma semana intensa.
A surra que Kramnik aplicou em Kasparov nessa partida foi dessas de antologia. O aspirante jogou um pouco mais agudo que em outras ocasiões, contando com que o "Ogro" caminhava por terreno desconhecido, e demorou só 25 jogadas para destroçar-lhe. Até um mês atrás, esta tinha sido a derrota mais curta que Kasparov havia sofrido em toda sua carreira.
Assim, quando regressei à Londres, tudo estava quase decidido. Dois pontos de desvantagem e, o que é pior, sem ter conseguido ganhar nem um encontro, Kasparov não parecia ter nem recursos nem moral para uma reação. Nem sequer em sua partida talismã, a número treze, e levando as brancas, fez um intento sério de bater Kramnik e ofereceu empate na jogada 14.
Tudo o mais que conseguiu foi dar emoção à última partida, elegendo para isso a mesma estratégia que lhe salvou frente a Karpov em 1987: jogar uma Catalã tranqüila, levando o peso da luta ao meio jogo, e confiando em que Kramnik tremesse o pulso no momento decisivo.
Lembro-me intensamente dos últimos instantes daquele encontro, um frio e chuvoso 2 de novembro. Quando já se via que Kasparov não tinha possibilidades, abandonei por um momento meu posto na sala de imprensa. Deixei de lado o celular, as chamadas à redação, os comentários excitados dos especialistas que se haviam congregado ali, e desci correndo até a sala de jogo -os três pisos de escadas - para ver "com meus próprios olhos" aquele momento histórico. Quase quinze anos depois de destronar Karpov, uma lenda viva, Kasparov oferecia um empate que equivalia a uma rendição, e felicitava ao novo Campeão do Mundo.
Artigo de David Lhada, publicado originalmente no site Clube de Xadrez Torre21.
quinta-feira, 1 de maio de 2008
O dia em que Kasparov perdeu
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